O poder modelador da vergonha

A vergonha piedosa abre nosso coração para a obra formativa do Espírito.

Christianity Today October 2, 2020
Illustration by Rick Szuecs / Source images: Kushal Medhi / Unsplash

Brené Brown, em sua participação no Super Soul Sunday de Oprah Winfrey, declarou: “Acho que a vergonha é algo letal, destrutivo. E acho que estamos profundamente mergulhados nela”. Sua palestra proferida nas conferências TED Talks, “Dando ouvidos à vergonha”, teve mais de 14 milhões de visualizações. Nela, Brené alerta que a vergonha é um gremlin que ri e repete duas mensagens em nossa mente: “[Você] nunca é bom o bastante” ou “Quem você pensa que é?”

Essa metáfora apresenta a vergonha como uma armadilha que se repete: experiências recorrentes de vergonha destroem nossa autoestima, e a baixa autoestima nos predispõe a sentir vergonha. Esse ciclo vicioso acaba saindo do controle, levando a padrões de comportamento viciantes e destrutivos. Para Brené Brown, a vergonha é um sentimento pernicioso que não tem nenhum propósito construtivo; devemos, portanto, renunciar ao seu uso e desenvolver resiliência a todas as formas de vergonha.

O desejo de eliminar a vergonha de nossa experiência cotidiana parece razoável, mas isso prejudica nossa capacidade de sermos pessoas morais. Os sentimentos morais estão fortemente entrelaçados; eles não existem de forma fragmentada. Portanto, como escreve Krista Thomason, “não podemos nos livrar de um sentimento [como a vergonha] sem ‘desfigurar’ todo o resto”.

Além disso, eliminar a vergonha em grande parte promove a falta de vergonha. Como Daniel Henninger escreveu no The Wall Street Journal, logo após as acusações contra Harvey Weinstein, Charlie Rose e Al Franken: “Seus atos revelam um colapso do domínio próprio. Isso, por sua vez, sugere uma dissipação mais ampla da consciência, do senso de que fazer algo é errado (…). Portanto, quando alguém pergunta como esses homens puderam se comportar de forma tão grosseira e monstruosa, uma das respostas é que eles (…) não (…) têm (…) vergonha”.

Henninger alerta para não nos iludirmos pensando que esses homens são casos isolados ou anomalias. Pelo contrário, eles são o produto de uma “cultura que acabou com a vergonha e os limites comportamentais”. A Escritura também reafirma a necessidade da vergonha e se posiciona contra a falta de vergonha. Os profetas repreendem Israel por seu entorpecimento espiritual e sua incapacidade de enrubescer por sua conduta detestável (Jr 3.3; 6.15; Sf 3.5). Da mesma forma, Paulo censura os coríntios por sua apatia moral e por não se lamentarem por seus pecados (1Co 5.2;15.34).

Con toda certeza, a vergonha pode ser tóxica, mas não necessariamente é. Devemos fazer uma distinção entre vergonha mundana e vergonha piedosa. Com a vergonha piedosa, nossas consciências são inflamadas por valores calibrados de acordo com o padrão de Deus, e não o do mundo. A vergonha piedosa está fundamentalmente relacionada com o certo e o errado da perspectiva de Deus; está atada à beleza e à santidade de Deus. Ela guia nossas escolhas futuras, impedindo-nos de fazer qualquer coisa que possa trazer desonra a Deus, à igreja, aos outros e a nós mesmos.

Ela nos lembra de nossa responsabilidade de acolher os que estão na fé como irmãos e irmãs, independentemente de sua origem socioeconômica, imigratória ou racial; pois o muro que nos divide foi destruído pelo sangue de Jesus Cristo (Ef 2.14;Fm 1.16). Também nos compele a respeitar a dignidade de todas as pessoas, pois todos nós fomos criados à imagem de Deus (Gn 1.26-27).

A vergonha piedosa avalia nossos pensamentos, ações e omissões passados com uma mente que não é conformada com o mundo, mas transformada pelo evangelho (Rm 12.1-2). Ela repreende nosso interesse voltado apenas para nós mesmos e nossa indiferença para com a perseguição e o sofrimento sofridos pelos outros, pois todas as partes do corpo de Cristo sofrem quando uma parte sofre (1Co 12.26). A vergonha piedosa condena nossa hesitação em nos juntarmos ao lamento daqueles que sofrem injustiça racial, e nos chama a “chorar com os que choram” (Rm 12.15). Ela repreende nossa disposição de humilhar outras pessoas online, quando nossos tweets mordazes sinalizam nossa própria “virtude”, em vez de buscar o bem genuíno dos outros.

A repreensão da vergonha piedosa é perturbadora e dolorosa; no entanto, produz fruto de justiça para aqueles que por ela foram exercitados (Hb 12.11). A repreensão da vergonha piedosa mina a autoestima indevida em prol da maturidade cristã.

A vergonha mundana destrói, mas a vergonha piedosa restaura. A vergonha piedosa mostra que entristecemos o Espírito Santo, mas também nos dá a segurança da graça (Hb 4.16). A vergonha piedosa nasce de um conhecimento genuíno daquilo que Deus requer e de sua misericórdia. Em resposta a “[Você] nunca é bom o bastante”, a vergonha piedosa concorda que nunca somos bons o bastante por nós mesmos, mas somos bons mais do que o suficiente por causa de Cristo (2Co 5.21).

Em resposta a “Quem você pensa que é?”, a vergonha piedosa nos acusa como pecadores, mas depois confirma que somos filhos e herdeiros de Deus por causa de nossa união com Cristo (Rm 8.17). A vergonha piedosa não contesta a honra que Deus deseja para seus filhos. Como aconteceu com o filho pródigo, quando ele caiu em si (Lc 15.17), a vergonha piedosa corrige, repreende para a contrição, o arrependimento e a humildade; e então compele a retornar ao abraço gracioso de nosso Pai – com a certeza de nosso perdão, nossa identidade reformada, nossos relacionamentos restaurados, nossa honra correta recuperada. A vergonha piedosa é aquela de que precisamos para andar de modo digno de nosso chamado como filhos de Deus.

Te-Li Lau é professor associado da Trinity Evangelical Divinity School e autor de Defending Shame: Its Formative Power in Paul’s Letters [Em defesa da vergonha: Seu poder formativo nas cartas de Paulo].

Traduzido por Eduardo Fettermann

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