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Deus sabia o que estava fazendo quando deu a Jesus duas árvores genealógicas

Como resolver as muitas disparidades entre as genealogias de Mateus e Lucas.

Christianity Today September 18, 2020
WikiMedia Commons

Problemas nas Escrituras funcionam como quebra-molas: eles podem ser frustrantes e causar danos aos incautos, mas, sem dúvida, nos fazem reduzir a velocidade e focar nossa atenção. Fato é que tensões provocam reflexões. As contradições aparentes nos forçam a pelejar com os textos bíblicos, prestando mais atenção aos pormenores. Quando Deus os inspirou, ele sabia o que estava fazendo.

Quando estudamos os evangelhos, de imediato encontramos o problema das diferenças significativas entre as genealogias de Jesus em Mateus e Lucas. Mateus 1 lista 42 gerações, que remontam a Abraão; Lucas 3 tem 77 gerações, que remontam a Adão. Das dezenas de nomes citados entre Davi e Jesus, apenas cinco aparecem nas duas listas. Pior ainda, nelas Jesus tem dois avôs paternos diferentes: Jacó (Mt 1.16) e Eli (Lc 3.23).

Os esforços para resolver as disparidades geralmente se concentram no lado de Mateus, em parte porque sua genealogia parece ter motivações mais teológicas: as numerosas lacunas, as mulheres citadas, os três grupos de 14 gerações e assim por diante. Lucas, segundo presumimos, está fornecendo “apenas os fatos”, enquanto Mateus os está trabalhando para provar um argumento. Mas essa visão rebaixa tanto o historiador em Mateus quanto o teólogo em Lucas. Penso que a genealogia de Lucas tem uma motivação teológica tão forte quanto a de Mateus, se não mais.

Considere como ele lista 77 gerações de Adão a Cristo. Esse número aponta para o Sábado (dia do descanso). Ele nos lembra da vingança de 77 vezes de Lameque (Gn 4.24) e do perdão de 77 vezes 1Ou 70 vezes 7. Segundo os estudiosos, não é claro se a expressão que se encontra nos manuscritos gregos deve ser entendida como "setenta vezes (multiplicado por) sete" ou "setenta e sete vezes (ocorrências)". de Jesus (Mt 18.22). Também evoca o ano do Jubileu (Lv 25.8–55), celebrado uma vez a cada sete séries de sete anos. Jesus proclama o cumprimento da promessa do Jubileu em Lucas 4.16-21, um acontecimento prenunciado dois capítulos antes, quando a convocação para se dirigir à terra natal para a realização do censo lembra a ordem do Jubileu de retornar à propriedade da família (Lv 25.10).

Também é digno de nota o fato de Lucas apresentar sua genealogia não no início da vida de Jesus, mas no início de seu ministério, quando ele "estava com cerca de trinta anos" (3.23). Trinta é um número impressionante. Os sacerdotes começavam seu ministério com essa idade (Nm 4.3), a mesma com que Davi se tornou rei (2Sm 5.4) e Ezequiel teve visões proféticas de Deus (Ez 1.1). Ao inserir sua genealogia nesse estágio da vida de Cristo, Lucas está conectando a ancestralidade de Jesus ao seu ministério como profeta, sacerdote e rei. Ao reconstituir sua genealogia até Adão, e não só até Abraão, ele retrata Jesus como profeta às nações, sacerdote para todos os povos e rei de toda a terra.

Depois, há a questão do(s) avô(s) paterno(s) de Jesus. Desde o início do século 3, as pessoas especulam que José teve dois pais, ou porque foi legalmente adotado ou porque era filho de um casamento no sistema de levirato (segundo este costume judaico, se um homem morresse sem deixar filhos, seu irmão se casaria com a viúva, a fim de preservar a linhagem da família). Se de fato foi assim, José seria filho de ambos, Eli e Jacó. Isso sempre soou como um desespero apologético para mim. Mas, então, comecei a notar todas as outras referências em Lucas 3 ao casamento em levirato ou à adoção legal.

Uma delas se relaciona com Herodes e seu irmão Filipe (Lc 3.1). Herodes casou-se com a esposa de Filipe, irritando judeus praticantes, e, mais tarde, levando João Batista à decapitação (Mc 6.17). Portanto, o relato de Lucas sobre a vida adulta de Jesus começa com um homem celebrando um “casamento em levirato” adúltero, pois o irmão ainda estava vivo.

Outra referência diz respeito ao próprio Jesus: “Ele era filho, como se pensava, de José” (Lc 3.23). Legalmente, Jesus era filho de José, mas José não era seu pai biológico. Como Gabriel explicou a Maria, Jesus seria chamado de “Filho do Altíssimo” e “Filho de Deus” (1.32,35).

Encontramos um exemplo até mesmo em João Batista, que faz um célebre contraste entre si mesmo e aquele “tão superior que não sou digno de desatar as correias de suas sandálias” (3.16). Desatar as correias da sandália era o momento-chave na halizah, o processo que liberava um homem do casamento em sistema de levirato (Dt 25.9; Rt 4.7). Talvez, como Gregório, o Grande argumentou, João estivesse se declarando não apenas inferior a Cristo, mas também indigno de substituí-lo como o verdadeiro marido de Israel. Assim, João Batista é o padrinho do casamento, não o noivo (Jo 3.29).

Nesse contexto mais amplo, o quebra-cabeça de Eli e Jacó não é uma coincidência, mas parte de um padrão – o qual poderíamos não perceber, se não tivéssemos diminuído a velocidade até quase parar. Graças a Deus pelos quebra-molas!

Andrew Wilson é o pastor responsável pela área de ensino da King’s Church London e autor de Spirit and Sacrament (Zondervan). Siga-o no Twitter: @AJWTheology.

Traduzido por Mauricio Zágari

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